ENTRE O JAPÃO E O BRASIL: RELIGIOSIDADE E DIÁLOGOS CULTURAIS ENTRE OS IMIGRANTES JAPONESES EM SANTA MARIA, RS.

SOARES, André Luis R. (Departamento de História, CCSH, UFSM)

GAUDIOSO, Tomoko Kimura (Departamento de Letras, Instituto de Letras, UFRGS).


Resumo: Este trabalho visa analisar as adaptações, remanejamento e práticas sincréticas entre os imigrantes japoneses residentes em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Os imigrantes nipônicos chegaram a cidade de Santa Maria e ao estado há pouco mais de cinqüenta anos (1958 e 1956, respectivamente) e demonstram uma variedade de práticas religiosas que mescla, apropria e ressignifica elementos de religiões tradicionais japonesas (xintoísmo e o budismo), com a religião católica apostólica romana e novas religiões japonesas (Johei, Sukyo-Mahikari, p.ex.). Em caráter introdutório, levanta questões sobre a permanência e mudança de aspectos da religiosidade antes da migração e elementos culturais.

Introdução

A imigração japonesa no estado do Rio Grande do Sul começou tardiamente, por iniciativas isoladas de migrantes de outros estados. Somente a partir de 1956 chegam famílias diretamente do Japão para o trabalho na agricultura, sistema que perdura até a extinção dos subsídios para a imigração em 19631. O grupo estudado em Santa Maria é oriundo em sua maioria da província de Kumamoto, na ilha de Kyushu, no sudoeste do Japão. Estes imigrantes vieram predispostos a trabalhar durante um curto período (4 a 5 anos) para enriquecer e retornar o mais breve possível ao Japão. Contratados para trabalhar na Fazenda São Pedro, de propriedade do ex-embaixador João Batista Luzardo, são submetidos ao sistema de colonato e a “escravidão” por dívidas, que inviabilizaram o retorno, de forma que muitos deles abandonaram as fazendas para buscar melhores condições de vida em outras cidades, como é o caso de Santa Maria2 (figura 1).

Após 11 meses e meio em Uruguaiana, e sem receber o pagamento que esperavam, recorrem a ajuda dos imigrantes radicados em São Paulo para saldarem as dívidas, e a partir disto, buscam novo lugar para se estabelecer, que será a cidade de Santa Maria, importante entroncamento ferroviário da época.

Uma vez empregados nas pequenas propriedades, os japoneses buscam se integrar a sociedade local. A estruturação da comunidade não ocorreu em um núcleo ou colônia, mas cada família ficou assentada nos sítios dos patrões que financiaram sua transferência de Uruguaiana para Santa Maria. Após a chegada, a comunidade organiza uma associação (nihonjinkai) que busca organizar os imigrantes em termos de objetivos comuns. Embora a comunidade tenha se organizado rapidamente em torno de necesidades como a escola e a manutenção da vida social, os aspectos ligados a religiosidade ficaram em segundo plano, sofrendo adequações, como os cultos em homenagem aos falecidos em igrejas católicas, porém segundo o rito budista, com missas no 7°, 49° dias, bem como nos dias dos aniversários anuais.


Imagem 1: Localização da rede ferroviária No Brasil e, no detalhe, a malha ferroviária no estado do RS.3

As religiões japonesas

Antes de discutir o significado dado e os sentidos da religião para os japoneses, é necessário um conceito geral e os significados da prática religiosa em termos gerais. O termo religião compreende, segundo Paiva “concepções, atribuições e histórias relacionadas com Deus ou deuses; sentimentos, afetos e emoções também relacionadas com essas entidades; ações, práticas, ritos igualmente relativos a essas concepções e emoções”4.

No que toca à concepção da religião, o povo japonês tem na sua origem a crença ao animatismo e animismo, os quais atribuem à própria natureza e aos seres vivos, objetos inanimados e fenômenos naturais um princípio vital e como tal, que influenciam a vida cotidiana das pessoas5. No período em que passa a desenvolver atividade agrícola com divisão de trabalho, surge novo conceito dêitico como politeísmo com existência de diversos deuses baseado na mitologia, equiparado a deuses da mitologia grega, que passa a existir sob nome de xintoísmo, juntamente com concepção de entidades anteriormente existente6.      

As religiões japonesas, neste sentido, são marcadas pela diversidade, mesmo que as matrizes históricas tornaram o budismo e o xintoísmo como determinantes, com centenas de divisões e ramificações. No que concerne ao budismo, Pereira afirma o que segue:

O Budismo no Japão é basicamente Mahayana, com raras exceções. Ao longo de sua história milenar, porém, esse Budismo nunca conformou uma expressão religiosa monolítica. Ainda hoje, encontram-se diversas “escolas” ou “ramos” budistas, com centenas de subdivisões7. (Pereira, 2006, p. 02)

Ao chegar ao Japão o budismo passou por um processo de japonização no qual o processo de sincretismo fundiu elementos de xintoísmo, confucionismo, taoísmo e crenças populares. Ao longo do tempo, diversas particularidades conferiram as práticas religiosas japonesas elementos de diferentes cultos, presentes desde o nascimento até posterior a morte:

       O Budismo, entretanto, não somente teve um relacionamento sincrético com o Xintoísmo, como também desenvolveu uma espécie de “divisão de trabalho” com o mesmo, no que tange a ritos de passagem: enquanto o Xintoísmo geralmente está relacionado com o nascimento e o matrimônio, o Budismo continua na esfera do culto aos antepassados e dos ritos funerários. Note-se, porém, que apesar de não serem práticas comuns, também é possível haver casamento budista e funeral xintoísta. (Pereira, op. Cit, p. 3-4.)

É necessário, porém, realizar uma breve crítica a popularização do conceito de sincretismo. Segundo Clarke(2008, p. 23-24)8 foi Herskovitz quem introduziu o termo no discurso antropológico em 1941, no sentido objetivo ou neutro para designar a reinterpretação de culturas religiosas. Embora tivesse opositores devido a sua concepção de transformação cultural similar a uma mistura mecânica, não há consenso em relação ao significado e abrangência do termo. Partindo do pressuposto que o sincretismo seria uma mistura ou miscigenação de culturas, o termo é inaplicável ou possui sérias limitações, uma vez que desconsidera as dinâmicas culturais e sociais nas relações de tempo-espaço dos imigrantes. Talvez mais correto seria propor o termo releitura ou ressignificação, embora ainda assim entraríamos em uma encruzilhada conceitual. O termo justaposição, proposto por Verger9 tampouco soluciona o problema.

Como, grosso modo, a organização social japonesa tem por base a aldeia em primeiro lugar, para depois a família e por último o indivíduo10 e os cultos aos antepassados denota a força da estrutura familiar, as ligações das comunidades com os templos ocorriam compulsoriamente a gerações, fazendo que o budismo também fosse uma religião por tradição. Durante o final do período Meiji (1868-1912) e posteriormente durante os períodos Taisho (1912-1926) o governo favorece o Xintoísmo e o culto ao imperador, diminuindo a importância do budismo. Ao longo do período Showa (1926-1989, anterior a 2ª guerra) diversos ramos do budismo apóiam o militarismo japonês, e após a 2ª grande guerra, a liberdade religiosa proporciona o surgimento de um sem número de novas religiões.

Devemos destacar que o surgimento e a proliferação destas novas religiões (“novas” não em relação a data de fundação, mas sim a independência relativa das tradições do xintoísmo e budismo), no caso do Rio Grande do Sul, tem um número razoável de adeptos, como veremos adiante.

Ao mesmo tempo, a “conversão” ao catolicismo deve ser observada com cautela, uma vez que diversos fatores, como sociais e culturais, mesclam-se na autodefinição religiosa feita pelos imigrantes. Talvez por isso Paiva (2005) tenha considerado diversas formas de “conversão” entre os praticantes de novas religiões, como a Perfect Liberty e a Seicho-no-Iê, considerando a identidade psicossocial dos frequentadores destas religiões11. Sendo assim, muitas vezes a auto-representação religiosa, bem como a pertença dos imigrantes, se constitui em um jogo dialético entre a inserção na comunidade e os benefícios sócio-econômicos obtidos, como inserção na sociedade, como afirma Pereira:


As igrejas cristãs não tiveram nenhum impedimento para o trabalho missionário entre os imigrantes; pelo contrário, os próprios funcionários do governo japonês aconselhavam-lhe a se batizarem. De um modo geral, a evangelização católica teve uma presença maior de padres sem ascendência japonesa, enquanto que, no caso dos protestantes, esta se deu com missionários japoneses ou nikkei. Muitos imigrantes (sobretudo depois da segunda geração) tornaram-se cristãos, mas isso é interpretado por Takashi Maeyama e Hirochika Nakamaki como uma adaptação ou acomodação social ao meio brasileiro. Ou seja, para não ter problemas com a vizinhança ou na escola, muitos japoneses permitiam o batismo de suas crianças, sendo que os padrinhos eram brasileiros não-descendentes12. (Pereira, 1991, p.167)

Conforme esclarece Kimura13 (1987, p. 105),  no Japão não há religião que possa ser considerado oficial como o catolicismo que predomina nos países europeus ou americanos. Assim, como atividade religiosa, o povo japonês pratica várias crenças sem demonstrar questionamento. Por exemplo, nas cerimônias ligados ao cotidiano, os japoneses freqüentam o templo xintoísta no Ano Novo para pedir bênção, casam através da cerimônia católica ou xintoísta, celebram o nascimento de Jesus comendo bolo da ceia de Natal e, ao mesmo tempo, mantém profunda ligação com o budismo, celebrando o funeral à moda budista. Nesse sentido, há adoção de religiões diferentes para as diversas etapas da vida, conforme necessidade espiritual ou mesmo sócio-econômica dos próprios japoneses, ao decorrer do tempo.  

A religião entre os imigrantes no Rio Grande do Sul

No campo da religião, embora seja conhecido como o maior país católico do mundo, o Brasil possui espaço para a presença de religiões de origem japonesa, trazidas por imigrantes que aqui chegaram. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), seis religiões orientais consideradas novas - que surgiram no século XX excetuando-se o Tenrikyo que foi fundada em 1838, foram detectadas diversas religiões de origem japonesa, inclusive na região sul.

Em 2000, 151 mil brasileiros se dividiam entre as igrejas orientais Messiânica, Seicho-no-Ie, Hare Krishna, Perfect Liberty, Tenrikyo e Mahicari, mais a igreja Omoto e Soka Gakkai, além da religião budista e xintoísta japonesa tradicional. Do total de fiéis, abaixo expostos, segundo os dados apresentados no Censo 2000 do IBGE, ressaltam o crescimento da diversidade religiosa no país.


Novas religiões

Norte

Nordeste

Sudeste

Sul

Centro-oeste

Adeptos no país

Igreja Messiânica Mundial

3.434

16.278

75.902

6.594

7.102

109.310

Seicho-no-Iê

844

1.396

18.899

3.780

2.865

27.784

Perfect Liberty

36

295

4.611

169

354

5.465

Tenrikyo

161

270

2.415

778

162

3.786

Mahikari

74

231

1.512

531

706

3.054

Hare Krishna

121

322

956

176

104

1.679

Tabela 1: Diversidade religiosa no Brasil, 2000 (Fonte: IBGE)

Exceto a religião Hare Krishna - de origem oriental surgida nos EUA, as chamados novas religiões são religiões sincréticas, isto é, mesclam aspectos das religiões tradicionais como o budismo e o xintoísmo, presentes em número considerável na região sul do país, inclusive no Rio Grande do Sul.

Essas novas religiões japonesas vêm exercendo influência à sociedade brasileira como elementos de transformação da cultura religiosa brasileira afirmam Souza e Albuquerque14. Segundo Andréa Gomes Santiago Tomita, “inicialmente restritas apenas aos integrantes da comunidade nipo-brasileira, tais religiões - pelo menos, parte delas - experimentou uma importante expansão entre pessoas sem ascendência japonesa a partir dos anos 70.”15

Uma das características dessas religiões é o caráter universal de suas doutrinas. A maioria dessas religiões foi criada pelos japoneses justamente quando o país caminhava para a modernidade, ou para a internacionalização, o que explica a sua aceitação pelos gaúchos.

Outro fator importante é que essas religiões, como comunidades, promovem atividades ligadas à cultura japonesa como cerimônia de chá e arranjos florais servindo como catalisador de valores culturais tipicamente japoneses. Portanto, a religião, além de constituir um caminho para a crença espiritual, são vias de acesso à arte e cultura japonesa.

Quanto às religiões mais tradicionais do Japão que estão presentes no Rio Grande do Sul, podemos mencionar duas seitas budistas: a primeira, “Jodo Shinshu”, fundado no Japão no século XII, possuem como adeptos maioria dos japoneses imigrantes. Na ocasião de atos fúnebres ou na cerimônia para recordar os entes queridos falecidos, os japoneses budistas solicitam a entonação de sutras ao monge Sukyo Maeda, um nissei ordenado monge em São Paulo e residente no Rio Grande do Sul há mais de 30 anos. Com idade avançada, outras pessoas budistas leigas também são convidadas a entonar sutras para as cerimônias.

A seita “Soto”, do zen budismo japonês que existe no Japão desde 1227, possui adeptos quase que totalmente de brasileiros. Possuem uma associação chamada “Via Zen”, em Porto Alegre, e sede de meditação no interior do município de Viamão.  Cabe salientar que, conforme monge Dengaku presidente dessa associação, o número de praticantes do zen budismo de origem japonesa no Rio Grande do Sul é extremamente escassa, de modo que não ultrapassa dez pessoas. 

Além das religiões japonesas de cunho budista e xintoísta, muitos imigrantes também são grandes devotos católicos e protestantes. Todos os anos, em datas comemorativas, os padres e pastores são convidados a realizarem missas em língua japonesa.

Aliás, os religiosos católicos tiveram seus papéis indispensáveis na adaptação de imigrantes no Rio Grande do Sul. Não podemos esquecer, por exemplo, o querido e saudoso padre Brandt que deu sua vida para atender às dificuldades passadas pelos imigrantes japoneses, percorrendo o estado nas primeiras décadas da imigração japonesa. Outra pessoa que não se pode deixar de mencionar é o padre Lino Stahl, fluente na língua japonesa que, por longos anos dedicou-se aos colonos japoneses. Aliás, mesmo após a sua aposentadoria, celebra mensalmente a missa, tanto como em Porto Alegre como na colônia de Ivoti. Graças a sua presença, no dia da missa, os japoneses podem participar da celebração religiosa todo falado em japonês, compreender o significado de sermões e harmonizar as suas almas.

Além disso, padre Lino, como é chamado carinhosamente pelas pessoas das colônias, ministrou por muito tempo o curso de língua japonesa oferecido pelo Consulado Geral do Japão em Porto Alegre, que funcionava no prédio da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mais tarde, esse pequeno curso que iniciou na década de 1970 resultou na criação do curso de extensão e, posteriormente no curso de graduação de língua japonesa, em nível de bacharelado, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1986.

Na colônia de Itati, há a Congregação Japonesa de Itati, vinculada à Igreja Evengélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), o que pode ter contribuído para a integração dos imigrantes, na comunidade brasileira.

No dia de homenagem aos mortos, ireisai, os monges, padres, pastores e reverendos de várias religiões se reúnem com os imigrantes e seus descendentes na sede da Associação Assistencial Nipo-Brasileira do Sul Enkyo, para realizarem cultos religiosos em língua japonesa. Nessa celebração, os japoneses e seus descendentes reúnem-se para homenagear seus entes queridos que decidiram perpetuar-se no solo gaúcho. É o momento de plena compreensão, harmonia e interação entre as religiões, de todas as origens, ocidentais e orientais, idosos e jovens. É uma lição onde aprendemos que a diferença não é a fonte de conflito e sim a grande oportunidade para compreendermos o outro, e descobrirmos que todos somos humanos.


As práticas religiosas entre os imigrantes

É unânime afirmar que os imigrantes, tanto no período do início do século XX como nas primeiras levas após a reabertura dos laços comerciais (1953), buscavam a fortuna material, relegando os aspectos religiosos para segundo plano. Segundo Ushida16 outra justificativa, dada para o não desenvolvimento de práticas religiosas japonesas no Brasil, foi pelo fato de existir um movimento antinipônico camuflado, motivo pelo qual o Ministério das relações Exteriores do Japão impedia a vinda de religiosos nipônicos para o Brasil.

No que diz respeito a religião do imigrante nipônico na colônia Ivotí, constatou-se que 46 % dos imigrantes ser budista, os que se dizem católicos vêm logo atrás com 25% de adeptos. A Seicho no Ie é a terceira com mais adeptos entre os imigrantes na colônia Ivoti, em seguida, vem a Souka Gakkai, a PL Kyoudan (Perfect Liberty) e a Protestante (Luterana). (Ushida, op. Cit., p. 77)

Se observados à distância, a característica mais evidente para o pesquisador é o sincretismo religioso, onde o butsudan, ou oratório budista, convive com a participação na missa católica, o batizado dos filhos, entre outras ações. Em todas os questionários realizados com as famílias japonesas de Santa Maria, a totalidade dos imigrantes de primeira geração (isseis) declararam-se budistas. No entanto, no decorrer das entrevistas realizadas com os mesmos, diversas pessoas afirmaram que haviam se batizado para poderem batizar os filhos na religião católica.  É o caso de T.Y., que afirmou:

A gente batizou os filhos na igreja, né, para ter padrinho. Os padrinhos do D. que escolheram o nome brasileiro deles. A gente casou na igreja para ter padrinhos, né? (T.Y. entrevista a André Soares, 2008)

O fato de os imigrantes da primeira geração batizarem seus filhos na igreja católica ou se casarem na igreja, segundo depoimento de entrevistados na Colônia de Ivoti (2003), se deveu principalmente à necessidade de obter a integração com a sociedade local, principalmente àquela que pertence a nível social mais elevada já que, sendo estrangeiros, os imigrantes não possuíam seu lugar definido na comunidade. Alguns entrevistados afirmaram igualmente que, batizando seus filhos, teriam padrinhos ou madrinhas que propiciariam-lhes benefícios econômicos e outras vantagens através de laços de parentesco por afinidade.

Numa entrevista à praticante de uma nova religião japonesa, Y. M, esta respondeu:


A gente, como não temos renda por sermos religiosos, não podemos sobreviver se não tivermos madrinhas. É por isso que, apesar de difundirmos nossa religião, batizamos nossos filhos na igreja católica. Não temos outra saída. Elas dão festa de aniversário, trazem presentes, roupas, não é? A gente não pode dar isso aos filhos. (Y.M. entrevista a Tomoko Gaudioso, 2003) 


       O fato demonstra que entre os japoneses da primeira geração, há prática formal da religião católica sem que isso seja assimilada como religião propriamente dita, atingindo a espiritualidade. Os batizados com este fim continuam sendo praticados até hoje como pode ser observado em conversas entre os nikkeis que, em encontros sociais comentam o status de padrinhos de seus filhos e netos.

Quanto a celebrações do cotidiano como colheita de safra agrícola, algumas comunidades transformaram-na em forma de festa local como “festa de pêssego” em Vila Nova, Porto Alegre, no início de verão; “festa de tomate” ocorrido na década de 1960 em Santa Maria etc. Em algumas famílias, colocam a primeira colheita da safra ao altar da família; algumas famílias que não possuem lavoura colocam no altar as primeiras frutas e verduras, compradas nos supermercados ou recebidas de presente, resguardando o costume da religião budista e xintoísta de ofertarem aos deuses e antepassados os frutos da terra em troca da dádiva e proteção contra os males do cotidiano. O casamento ocorre seguindo principalmente a cerimônia católica, visto que maioria das pessoas de geração na idade de casar estarem batizados. Além disso, praticamente todos os nikkeis participam de forma direta ou indireta das festividades religiosas do catolicismo, acompanhando o calendário brasileiro.

“O meu tio (Walter Cechella, presidente da associação comercial) foi padrinho de diversos casamentos entre os filhos dos imigrantes. Temos fotos, eles gostavam” (L.C.A., entrevista a André Soares em 2008).

O convívio de religiões dentro do mesmo indivíduo parece não incomodar os imigrantes japoneses visto que eles praticam várias crenças sem demonstrar estranheza. De certa forma, poder-se-ia afirmar que não ocorre sincretismo propriamente dito mas sim uma convivência harmoniosa pois ritual de cada religião é executado independentemente sem que houvesse miscigenação como nas religiões de origem africana como umbanda ou outras de matriz africana.  Os santos católicos não se correspondem aos deuses japoneses, novos ou antigos, nem a Buda.

Outra questão é o envelhecimento dos imigrantes. Com o decorrer do tempo, os japoneses passaram a se preocupar com sua velhice e a morte: a de encontrar o local onde o espírito do morto possa se sossegar em paz. 

No Brasil, particularmente no Rio Grande do Sul não há cemitério budista. Assim, como afirma S.S. os japoneses que pretenderem ser sepultados como budistas não teriam onde descansar suas almas:


Pois é, aqui temos que ser católicos. Depois de morrer, tenho que ir ao cemitério. É católico.  Senão como vai ser? Eu era budista mas agora já não sou mais porque vou morrer, né? A maioria dos que moram em Ivoti são católicos agora. Ah? Itati? Lá todos são protestantes. (S.S. entrevista a Tomoko Gaudioso, 2009) 


Portanto, a questão de religiosidade nos dias atuais entre os imigrantes japoneses está retomando seu significado como religiosidade e espiritualidade do indivíduo ao contrário do primórdio da imigração. O benefício econômico e social não é mais visado pelos japoneses ao se converterem ao catolicismo. Pelo contrário, eles buscam religião católica como modo de buscar benefício para sua alma post morten, na certeza que estará bem protegida depois que partirem deste mundo, talvez na crença budista de que tudo permanece no mundo, e como xintoísta, na tentativa de se tornarem imortais e quem sabe protetores de seus descendentes na terra estranha que finalmente resolveu permanecer. 

Embora a auto-declaração seja de que as famílias de Santa Maria são budistas, as práticas do xintoísmo continuam prevalecendo, no qual “os japoneses ainda preservam, de forma inconsciente, certas características da prática xintoísta. Tal fenômeno leva alguns estudiosos a dizer que a religião tradicional japonesa é o xintó-budismo, uma mescla das duas religiões mais praticadas no Japão”17.

  Das dezessete famílias em Santa Maria, quinze responderem praticarem o budismo e o xintoísmo. Contudo, mesmo que os imigrantes se declarem desta forma, a “conversão” ao catolicismo acontece em razão de quererem ser aceitos pela comunidade local, como é o caso da colônia de Ivoti, a fim de poderem ser enterrados em um bom local no cemitério da cidade.

Considerações finais

As pesquisas sobre as comunidades nipônicas do Brasil meridional são escassas. As pesquisas levadas a cabo por Dante de Laytano18 (1967, 1980), Moacyr Flores19 (1975) são perspectivas globais, essencialmente demográficas que atendiam os pressupostos históricos e antropológicos da época. Após estes trabalhos, poucos pesquisadores se debruçaram sobre o tema, e somente agora, nas comemorações relativas ao centenário da imigração, novos olhares se voltam para a temática da imigração, dos imigrantes e das outras colônias fora do eixo São Paulo- Paraná. Os raros trabalhos sobre os japoneses no norte ou nordeste do país tampouco avançaram sobre a década de 1980.

Desta forma, há diversos aspectos a serem explorados, principalmente porque, no Rio Grande do Sul, temos ainda a possibilidade de explorar aspectos histórica e antropologicamente relevantes uma vez que muitos dos primeiros imigrantes ainda estão vivos, podendo oferecer uma visão em primeira mão sobre a vida, os costumes e a organização social de grupos humanos migrantes no pós guerra, mas com sentimento de pertença de “autênticos japoneses”, como é o caso dos “homens Meiji”20, referindo-se a verdadeiros nipônicos em oposição aos imigrantes anteriores a 2ª grande guerra.

Nesta esteira, as pesquisas em muito devem avançar não somente sobre a religiosidade, mas as formas como esta se manifestam, os pontos de intersecção entre as “novas” e “tradicionais” religiões japonesas, bem como a forma como estas religiões se inserem no contexto nacional, arrebanhando cada vez mais brasileiros ao invés de nipo-descendentes.

No caso dos imigrantes e seus descendentes no Rio Grande do Sul, como expomos, não podemos falar nem em sincretismo nem em justaposição. Talvez o convívio entre os diversos aspectos de diversas religiões, as diversas práticas em distintos momentos seja mais adequado para falar da forma como os japoneses praticam sua religião, seja antes ou depois da imigração. Assim, o que pode parecer sincretismo ou convivência de práticas religiosas talvez sejam, por um lado, adaptações sócio-culturais para inserção na comunidade; por outro, a manutenção das diversas religiões conviverem em tranqüilidade, como sempre aconteceu com as diversas práticas budistas, xintoístas, animistas entre outras. Em todos os casos, há muito para pesquisar.



1 SANTOS, Geraldine Alves. DOLL, Johannes. GAUDIOSO, Tomoko Kimura. A integração cultural do Japonês na cultura brasileira: a experiência da Colônia de Ivoti. In: Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito PPG DIR./UFRGS. Edição Especial v.1 , n.3 (nov 2003). Porto Alegre, pg. 55.

2 Soares, A. L.R.; Gaudioso, T. K. et. all. 50 anos de História: Imigração Japonesa em Santa Maria, RS (1958-2008). Editora Maria do Cais, Itajaí, SC, 2008, 200 p.

3 http://www.transportes.gov.br/bit/ferro/FERRO.htm  e http://www.estacoesferroviarias.com.br, último acesso em 06 de janeiro de 2008.

4 Paiva, José Geraldo. Psicologia cognitiva e religião. In: Revista de Estudos da Religião, REVER, março de 2007, p. 183-191. Disponível em: www.pucsp.br/rever/rv1_2007/p_paiva.pdf, último acesso em 19 de março de 2009. p. 184

5 Britannica International Enciclopédia. V.14, 2001998, p. 375-6.

6 Tazawa, Y., Okuda, S. e Matsubara S., História Cultural do Japão:uma perspectiva. Tóquio: Ministério dos negócios Estrangeiros do Japão, 1973, p. 9-15.

7 Pereira, Ronan Alves. In: Ponto de Encontro de Ex- Fellow (Revista Eletrônica), Edição no.1, São Paulo, Fundação Japão, 2006, 28p. Disponível em: http://www.fjsp.org.br/estudos/ed%2001/artigo%20Budismo%20-%20Ronan.doc;  Acesso em 10 agosto de 2008.

8Clarke, Peter B. As Novas religiões Japonesas e suas estratégias de adaptação no Brasil. In: Revista de Estudos da Religião, REVER, junho de 2008, p. 22-45. Disponível em: www.pucsp.br/rever/rv2_2008/t_clarke.pdf, último acesso em 19 de março de 2009.

9 Apud Clarke, 2008, op. Cit, p.25.

10 Cardoso, Ruth Corrêa Leite. Estrutura familiar e mobilidade social: Estudo dos japoneses no Estado de São Paulo. Tradução para japonês de Masato Ninomiya. São Paulo: Primus - Comunicação, 1995.

11 Paiva, José Geraldo de. Novas Religiões Japonesas e sua inserção no Brasil: discussões a partir da psicologia. Revista USP, São Paulo, n.67, p. 208-217, setembro/ novembro 2005.

12 Pereira, Ronan Alves. Religiões Japonesas no Brasil: Identidade e mudança sócio-cultural. Ronan Alves Pereira. In: Anais do II Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua, Literatura e Cultura Japonesa. Centro de Estudos Japoneses da USP, 1991.  Pg. 165-169.

13 kimura, Shosaburou. Introduction to Japan.  Tokyo: Mitsubishi Motors Corporation, 1987, p. 105-11.

14 Cf. SOUZA, Beatriz M. e ALBUQUERQUE, Leila M. "Resistência Conservadora à Modernidade: O Caso de Uma Nova Seita Japonesa no Brasil". In: Latin American Studies 14. Japan: The University of Tsukuba,1995.

15 Cf. TOMITA, Andréa Gomes Santiago. As Novas Religiões Japonesas como instrumento de transmissão de cultura japonesa no Brasil. Revista de Estudos da Religião - REVER - N. 3 - Ano 4 2004, disponível em http://www.pucsp.br/rever/rv3_2004/t_tomita.htm., último acesso em 25 de fevereiro de 2009.

16 Marco Antônio Tuchtegen Ushida, A imigração Nipônica no Rio Grande do Sul, monografia de conclusão de curso de Ciências Sociais, Departamento de Ciências Sociais, PUCRS, Porto Alegre, dezembro de 1999.

17 Ushida, op. Cit., p. 79.

18 Laytano, Dante de. O Japonês no Rio Grande do Sul. Separata do Colóquio Brasil Japão, São Paulo, 1967. Japoneses no sul: Rio Grande do Sul e Santa Catarina. In: Saito, Hiroshi (org.) A presença japonesa no Brasil. Ed. USP, T. A. Queiroz, 1980. p. 39-66.

19 FLORES, Moacyr . Japoneses no Rio Grande do Sul. Veritas, Porto Alegre, v. 20, n. 77, p. 65-98, 1975.

20 Clarke, op. Cit. P. 28.